terça-feira, 1 de novembro de 2011

Lula entre atos

Todos observamos. Documentários dependem de longos períodos de observação. O documentarista testemunha um evento e dá ao espectador sua impressão, seu parecer sobre o que foi captado pelas lentes da câmera. Suas intervenções podem ser muito presentes como em Santiago, obra-prima de João Moreira Salles, na qual o diretor assumiu sua posição manipuladora da realidade. Seu grande mérito foi ter exposto aos espectadores a forma como dirigiu as filmagens em 1992 e sua reflexão, sua autocrítica, treze anos depois, sobre o modo como conduziu o filme.

Exemplos menos radicais de intervenção aparecem em filmes como Crônicas de um verão, de Jean Rouch e Edgar Morin, considerado o marco inicial do cinema verdade. Nele, os diretores usaram técnicas presentes no cinema direto, sequências encenadas e, assim, experimentaram várias formas de fazer o filme. No final, após uma projeção do documentário para as pessoas que tinham participado das filmagens, os diretores promoveram um debate onde todos expuseram suas opiniões sobre o que viram. Antes de acabar, Rouch e Morin ainda fizeram uma reflexão sobre o filme que tinham feito.

Em Primárias, de Robert Drew, filme expoente do início do cinema direto, as intervenções do realizador e sua equipe são as menores possíveis. As novas tecnologias da época permitiram a Drew experimentar novas linguagens. Partindo da ideia da ‘mosca na parede’, o diretor utilizou muitos planos-sequência e nenhuma música inserida na pós-produção, para acompanhar as prévias para a escolha do candidato do partido democrata que disputaria as eleições para a presidência dos EUA, em 1960.

Também um “filme de presidente”, Entreatos é, junto com outros documentários de João Moreira Salles como Nelson Freire ou a série Futebol, co-dirigida por Arthur Fontes, basicamente, um longa-metragem de observação. O diretor e sua equipe acompanharam os 33 dias anteriores à eleição de Lula para a presidência da república, em 2002. Numa análise superficial, diríamos que o longa se aproxima do cinema direto americano da década de 1960, estilo “fundado” pelo já citado Primárias, de Robert Drew.

Mas o que diferencia Entreatos dos outros é seu personagem principal, Lula. Figura carismática, o ex-presidente se apresenta e representa de uma maneira que poucas pessoas conheciam. Como disse Elio Gaspari em artigo publicado no site Observatório da Imprensa, em 16/11/2004, “Salles e Walter Carvalho, o bruxo da câmera, registraram coisas que os jornalistas políticos não perceberam ou não conseguiram expressar.”. Personagem e filme vão além, muito além dessa breve análise.

O que, a meu ver, engrandece Entreatos, é justamente seu corte final, a razão para seu titulo. Em entrevista publicada em novembro de 2004 e reproduzida no encarte do DVD do filme, Salles disse: “na edição, para a minha surpresa, percebi que o material público e o material privado tinham identidades muito diferentes. Não conseguiam conviver no mesmo filme”. Ao deixar de fora todos os momentos públicos (atos) da campanha, o documentário pôde mostrar um lado pouco conhecido dos que estavam envolvidos na corrida eleitoral, suas discussões e bastidores. “Não são momentos memoráveis para quem os viveu. (...) Se esses momentos ganham alguma importância, é por estarem inseridos numa narrativa, numa construção que é própria do documentário”, disse o diretor.

Aparece aí o Lula mais próximo daquilo que ele realmente é, o que não significa que o futuro (ex-)presidente não estivesse representando para as câmeras. Fernão Pessoa Ramos, em seu “Mas afinal... o que é mesmo documentário?”, diz que “...a presença da câmera e seu equipamento flexionam, em alguma medida, a atitude de Lula. Podemos vislumbrar, em diversos momentos do filme (...) a atitude exibicionista para a câmera provocada pela situação de tomada, tão comum em documentários de estilística direta.”. Walter Carvalho, em entrevista reproduzida no encarte do DVD, conta que “quando eu entrava com a câmera no camarim, por exemplo, ele [Lula] percebia e logo começava a conversar com alguém sobre um assunto que supunha ser interessante para o filme”. Nesse sentido, o diretor afirma não acreditar numa realidade intocada, inume à presença da câmera. Para ele, “teatro e verdade acontecem ao mesmo tempo. (...) A presença da câmera catalisa determinadas coisas, desperta nele [Lula] o desejo de falar sobre certos assuntos, o que é muito bom para o filme. (...) O que a câmera estimula não deve ser recusado sob a alegação de que é teatro. O teatro interessa.”. E esse “teatro” produz cenas memoráveis como a conversa, dentro de um jatinho, com José Alencar. A certa altura, Lula diz, ‘Aquele palácio [Alvorada] é triste porque o Fernando Henrique Cardoso nunca jogou bola. Ele não dança’. ‘Não bebe um gole’, emenda Alencar. ‘Não bebe um gole’, repete Lula.

O filme também possui vários momentos vazios, em que, a primeira vista, nada de importante acontece. Planos-sequência de longas conversas no avião, ou o trecho em que, se preparando para a gravação de um programa eleitoral, Lula diz que uma de suas maiores frustrações é não saber batucar. Momentos como esse, somados às sequências em que a equipe é percebida, afastam Entreatos do cinema direto mais ortodoxo.

No início do filme, Salles explica o contexto de produção, introduz o filme através de voice over. A equipe volta a “aparecer” quando, numa reunião de preparação para o debate do primeiro turno, na Rede Globo, José Dirceu, à época presidente do PT, pergunta, se dirigindo para a câmera, quem eram aqueles, o que faziam ali e se estavam gravando. Dirceu até então nada sabia sobre o documentário. “Ali pensei que o filme tinha acabado. (...) O momento era de fato muito sensível. Qualquer movimento do Walter Carvalho em direção, por exemplo, a um documento sobre a mesa poderia parecer um interesse especial por aquele documento. Felizmente conseguimos superar o imprevisto”, disse o diretor. Em outras sequências a diretora de produção, Raquel Zangrandi, aparece em quadro e Walter Carvalho interage com Lula no avião.

O momento menos “direto” do filme e também o único em que a montagem foge de sua estrutura cronológica acontece quando a equipe entrevista o que achavam ser um amigo de Lula, que havia pegado uma carona no avião que levava a equipe do filme de Florianópolis para Porto Alegre. Ao longo da conversa, o jovem se revela apenas um admirador do candidato que, depois de perder o voo, encontra Lula no saguão do aeroporto e pede a ele um abraço para salvar seu dia. Depois de uma breve prosa, é convidado a viajar no jatinho da equipe. No resto do filme a câmera permanece quase que oculta, apenas observando o que acontece.

O estilo “direto” do filme é também reforçado através da montagem de Felipe Lacerda. No osso, sem efeitos, os cortes dão ritmo próprio ao filme. O espírito observador das imagens captadas por Walter Carvalho é elevado à máxima potência no corte final de Entreatos. Em alguns momentos ’lenta’, com planos muito longos, a montagem nem por isso deixa o filme chato ou arrastado. O importante é perceber como essa já citada característica comum a alguns dos últimos documentários de João Salles, a presença de situações “mortas”, em que nada acontece, se tornam importantes dentro da narrativa fílmica. Fica clara a sensibilidade e sintonia de Walter Carvalho em relação àquilo que era capturado, em clima de guerrilha, por suas lentes. “A câmera seguia o Lula ininterruptamente, muitas fezes sem dar tempo de mudar o filtro, de bater o branco, etc. Tecnicamente, portanto, a fotografia de Entreatos é uma fotografia impura, mas as impurezas e a desconstrução técnica estão a serviço do filme”, disse, em entrevista, o fotógrafo.

Por tudo isso, Entreatos, ao mesmo tempo em que se aproxima do cinema direto de Drew, ganha uma dimensão maior ao usar, em sua montagem final, “ruídos” como a entrevista do carona no avião da equipe de filmagem, ou o momento de tensão com José Dirceu na reunião preparatória para o debate do primeiro turno das eleições de 2002. Ao contrário do que pensou João Salles, o incidente com Dirceu não significou o fim das gravações e no resto do filme a equipe pôde estar, aparentemente, em todos os lugares em que desejava. Quando não foram autorizados, como no dia do resultado do segundo turno, a câmera foi feita por terceiros. Foi Mariana, filha do então deputado federal Aloizio Mercadante, quem filmou os instantes que precederam a confirmação de que Lula era o novo presidente do Brasil. Já com Walter Carvalho na câmera, a cena final de “Entreatos” é um resumo do filme em todos os seus aspectos. O plano-sequência começa com Lula e um grupo de pessoas entrando no elevador do hotel. Walter hesita e, quando a porta está quase fechando, é chamado para dentro. O elevador desce até o andar térreo e todos saem. Lula se dirige ao saguão do hotel. A câmera o segue de perto quando é engolido por um mar de repórteres, microfones e equipes de TV. Depois de filmar a luta de Lula para se livrar da turba, Walter lentamente se afasta e o presidente eleito desaparece no meio dos jornalistas e o filme termina em um lento fade out da imagem. Tensão, guerrilha, momentos vazios e de extrema sensibilidade, juntos, num mesmo plano. Entreatos é isso.