quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Real... ou não

Trabalho feito para a Pós em Cinema Documentário, na FGV. Reflexões sobre a frase de Antonioni.


“Não nos iludamos: no mesmo momento em que nos inspira, a realidade se torna nosso inimigo número um”. (Michelangelo Antonioni, Comincio a capire, Valverde: Il Girasole Edizioni, 1999.)

Real... ou não

Realidade. Do latim realitate e, de acordo com o Dicionário Brasileiro Globo, qualidade do que é real; aquilo que existe de fato. Mas e diante das câmeras? Será que a realidade, quando captada pelas lentes do documentarista, é a mesma de quando não há alguém filmando? Podemos acreditar que tudo o que vemos num documentário é real e, consequentemente, representa o que de fato existe? Hoje, a resposta para as duas perguntas é a mesma: não. Mas já foi diferente.

No final do século XIX e no início do XX, o cinema dava seus primeiros passos e, ao redor do mundo, vários realizadores filmaram o cotidiano de cidades, revelaram povos desconhecidos, etc. Os filmes eram observações neutras de um evento, na maioria das vezes feitos de um só plano e não tinham narrativas elaboradas. Queriam apenas mostrar o desconhecido. Não contavam histórias. Retratavam a realidade sem interferências. Tinham apenas valor documental.

É “Nanook do norte”, de Robert J. Flaherty, considerado o primeiro longa-metragem documentário, que simboliza a mudança. O diretor recriou, reencenou o cotidiano de um grupo de esquimós, para mostrar ao público como era a vida daquele povo que vivia em regiões próximas ao Círculo Polar Ártico. Um exemplo aparece quando Flaherty, que não queria mostrar que os esquimós caçavam usando armas de fogo, pede que Nanook e seus companheiros matem uma morsa usando arpões. O diretor construiu a “realidade” que aparece nas telas como sendo o modo de vida dos esquimós, quando, na verdade, eles já não faziam várias das atividades filmadas há muitos anos. Ao mesmo tempo em que inspirou Flaherty, o real se tornou seu grande inimigo e, para driblá-lo, o diretor utilizou procedimentos de ficção, o “de novo”, para chegar ao resultado que queria.

Quase um século depois, documentaristas continuam vendo, testemunhando e observando diferentes pessoas, lugares, culturas e crenças, em busca de novas formas narrativas. Em todos os casos, seja retratando o outro ou a nós mesmos, a realidade inspira e impõe inúmeras dificuldades.

Me inspiram muito filmes que brincam com o real. “Jogo de cena”, de Eduardo Coutinho é um deles. Histórias reais, contadas por mulheres reais, são reencenadas, repetidas por atrizes, todas no mesmo cenário sem cenário: uma cadeira no palco de um teatro, de costas para as outras cadeiras (vazias) da platéia. Os depoimentos se repetem, ora contados pelas mulheres “reais”, ora pelas atrizes. A cada ida e volta o filme cresce. Já não se pode mais afirmar se o que foi dito é real ou não. Junto às interpretações, Andrea Beltrão e Marília Pêra contam o que sentiram ao reencenarem as histórias daquelas mulheres “de verdade”. Realidade e ficção, juntas, prendem cada vez mais o espectador que, em determinado momento, para de querer adivinhar o que é real ou não e se deixa levar pela magnífica construção do filme. E esse não saber instiga, incomoda, faz pensar. Brincar com a realidade, saber usar a seu favor o excesso de representações, faz de “Jogo de cena” um grande filme. Como o próprio Coutinho disse certa vez: “pra se mudar a realidade, para criticá-la, a primeira coisa que se deve fazer é aceitá-la como ela é... pelo simples fato de existir”.

Mas não é só o real que existe. Estamira, personagem do filme homônimo de Marcos Prado, diz que “Tudo o que é imaginário tem, existe, é”. Enigmática, a frase é uma síntese da personagem e do documentário. A partir dela, juntando realidade e imaginação, chegamos a um ponto chave, o de representação. Num primeiro momento pode não parecer, mas todos representamos, o tempo todo. Real e imaginário unidos, ainda que inconscientemente. Nós, os únicos que sabemos como realmente somos, usamos a imaginação para representarmos, ou nos apresentarmos, da forma como queremos perante o mundo. Se fazemos isso normalmente, sem percebermos, quando temos consciência de que somos observados, a “estratégia” é elevada à décima potência. Usamos a imaginação para criarmos uma imagem de nós mesmos. A que gostaríamos de passar para quem nos ouve ou vê. Para isso, mudamos, melhoramos, tentamos convencer o outro de que tudo o que dizemos é real, ainda que isso seja somente a representação de algo que de fato não existe.

Tempos difíceis esses, em que quem está falando acha que sabe o que queremos ouvir e, diante da câmera, muda seu jeito de ser e agir. Para ele, o importante é aparecer bem, bonito, na tela do cinema ou da TV, dizer o que acha que queremos ouvir. Temos que ganhar a confiança, fazer com que fique à vontade, para que a representação seja a menor possível. E se não quisermos, assumamos nossa posição manipuladora da realidade como fez João Moreira Salles, em “Santiago”. O grande mérito de Salles foi ter exposto aos espectadores a forma como dirigiu as filmagens em 1992 e sua reflexão, sua autocrítica, treze anos depois, sobre o modo como conduziu o filme. Por isso, ter o controle da situação, sempre que possível, e saber o que estamos fazendo na hora da captação é essencial para tomarmos as decisões corretas e sermos capazes de mudar ou assumir novos papéis nos filmes que vamos fazer. Ou não.